Um dedo de prosa
O poeta aparece
novamente. Não sabe mais o que faz. Não sabe mais a que veio. Vagueia pelas
palavras, como sempre, como quem não tem nada a dizer. Alguma coisa que ele
arranha nos cadernos e lê em voz alta aos seus cachorros, que compreendem tanto
quanto ele. O poeta recusa-se a calar, quer cantar, relatar, mexer com as
palavras, fazê-las dançar diante de um possível leitor. Por teimosia. Não
abandona seu labor vagabundo.
Diário olhando a Lua
Introdução
o ser da poesia
fala-cala
uma bolha
muda
úmida
superfície
interior
a palavra da poesia
tijolo
pedra
o som
de cada sílaba
no lugar
certo
ou em certo
lugar
o lugar do sentido:
a forma
o fundo-forma
o fundo forma
a forma é o fundo
a forma-fundo
a forma funda
1
A lua parece
uma vergonha. Sempre exposta. Uma espinha no rosto. Dorsal. Espinho na carne.
Sangra o ar vermelho. Que a envolve. Envolta em olhos. Que a vêm. Cheios de
pó. Putrefação.
2
A lua parece dentadura postiça. Dentro da boca.
O céu tem uma boca banguela. Não aquela. Que Levy Strauss viu na baia da
Guanabara. A lua é vermelha. E o céu. Sorridente. Exibe. Vinho. A jugular de um
incauto. Afiados caninos. Parece que sangra. Vermelha. A lua. Dentadura
postiça.
3
A foto
selvagem da lua. A lua correia armadura. Rua da amargura. Rimar em lua.
Como eu
gosto! Gozo! Como é bom! A luta da lua. A luz. O deboche.
Sangrenta.
Um ataque de napalm. O destaque no jornal. O sofrido do fortuito. À zero.
4
Celestial Selena. Virgem. Só. Prata. Mulher. Yin. Cloaca. Olho do abismo. Metade
iluminada. Metade escondida. Metade luz. Metade sombra. Metade frente. Metade
bunda. Proa e popa. Sangra. Vermelha.
5
Somos
paisagem. Seu olho nos assiste. Acero. Obra por nós. Debruça-se sobre nós.
Escala o céu. Imita o sol. Projeta-se. Parece feita de luz. Um pomo aceso.
Mordido. Mas é uma rocha opaca. Somos paisagem. Nada seremos senão poeira.
Perdão por
nós.
Calamos.
6
A fria
fogueira de seu único olho vermelho. Grito mudo, hirto, paralisado, todo
angústia. Dentes ao encontro de joelhos.
7
Olho de gato
irisado. Único. Só. No céu. Vazio. Dele mesmo sem.
Boca de
abismo.
Bater palma
com uma única mão.
Um coam.
8
Ponto de
fuga. Ponto de cruz. Umbigo do céu. O anti-sol? Cilene. A sempre só? Silencia.
Lâmina de nuvem. Rasgo de olho.
9
Lua sorriso
de gato. Se acaba. A cada dia. Abocanha o calendário. Arreganha único dente. Sujo
de sangue. A lua tá vermelha que só vendo! Eu nunca a vi tanto parecer consigo
mesma. A ponto de ser outra. A boca do céu. A lua continua vermelha. A envolve
um ar sulfúrico. Ou o olho que a vê.
O eco no
espelho. A lua ao avesso. O que vê Narciso. Encorpado em prata.
10
Lua. Olho de
puta. Dizem que prata. Cara de queijo. Carcomida por ratos. O dragão e o herói
que o abate. Chamado Jorge. Dizem que sonho. A habitam selenitas. Cara de bolo.
Olho furado por nave terrestre. Primeiros pés dos homens. Arrancada de seu
silêncio.
11
Lua de
prata. Mata. Não rima assim não! Rodeada de estrelas.
Eterna? Sabe
os sentidos que tem para os homens? Os sentidos que os homens nela têm?
O que
representas? Sabes? Alguma coisa? De ti? De nós? Ou tu és apenas escolho.
Perdido. Um olho. Do cu? De Deus? De nossas almas cheias de culpas? Se não te
sabes, tu és? Vejo. Um pedregulho. Sem sentido.
12
A lua no
espelho. O labirinto. Escapar do labirinto é percorrê-lo por inteiro. O voo
rumo ao sol. O final sempre é o mar. Ancestral.
13
A lua tarda.
Arde. Mas não mata.
14
Prostituta.
Puta. Lua. Morta. Torta. Cara de espelho. Cara de bunda. Sem voz. Muda. Nua.
Lua.
És? Não és?
Acendes. Apagas. Não sabes? Aonde vais? Vais? De onde és? Ou apenas estás?
15
A lua é uma
interjeição. Não uma pergunta. Nós quem perguntamos. A lua é sempre surpresa. Um
oh! Mas, no que eu mudo. A lua muda. O tempo todo muda a lua. Por isso também
não é. Deixa de ser. Ou não a vejo. Vejo a luz do sol que nela se reflete. A
isso dou o nome de lua. Tudo o que vejo é a luz que incandesce em torno de um
objeto opaco. Sem luz do sol. Lua não seria para nossos olhos. Também opacos.
Escolho. Pedregulho. De prata? Prata são nossos olhos.
A lua
sangra. Vemos a lua sangrar. Há muito ar pesado em torno aos nossos olhos. Um
olho. Um dente arrancado. Um céu cariado.
A lua careca
parece um palhaço espantado. Espantalho. Face furada de varíola.
16
A lua invisível
ficou aos pedaços. Choveu noite toda.
A lua pateta
não é mais a mesma. Choveu noite inteira. Ninguém há de vê-la.
17
A paisagem
inabordável. A lua muda. Invisível. Some. Sobe. Num poste altíssimo. De lá
assiste aos homens. Seu olho cego. No além-túmulo. Centro do céu escuro. Não há
nada. Não existimos mais.
18
Vejo alado um
cavalo.
Teus grandes
lábios se abrem. Engolem. A cabeça de um prédio. O céu pela boca.
A turma do
gargarejo olha o cenário desaparecer. Tudo some. As estrelas empalidecem. Nuas.
Não há mais. Nem nós havemos. Nem tu – desventurado ser de angústia. “Humor
vagabundo”.
19
Artista da
palavra. O cantor. Na ponta da língua. No céu da boca. Lua. No palato do céu.
Dentro da caverna da boca. O oco, eco. Ego.
O canto.
Poeta. Antena da raça.
20
A cruz de
ferro. Contra os pagãos.
O coice na
cara do outro. O outro sempre outro. Mais outro do que sempre. Mas sempre.
Coice.
Na ponta do
ventre. Lá onde o vento. Faz a curva. Lá onde o oco. No centro do ser. Mais dói.
Onde o ser. É mais ser. O suporta.
Cruz de
ouro. Abre pulmões. A guerra santa onde está? A guerra tonta. Lua. A velha torta.
Tudo vê aí
de cima! Calada. Agora que te apagas. Minguas. És sol? Solidificas?
21
Vejo um
cavalo alado. Estás ao meu lado? Atas comigo um acordo? És toda eco? De luz – um
espelho? Escondes atrás da pedra. Chamada Terra.
22
Deus está
presente. Quê medo Deus me dá! Parece um deus do delírio. Um deus que nem é
deus de tanto deus que é. Um deus que nem é. Um deus que não acredita em si
mesmo. Um deus que não acredita nos homens. Que eles existam. Não acredita em
nós. Que existimos. Um deus que não se ouve. Preside em silêncio um céu de
latão. Sorriso de látex. Dentifrício. Dentes em brancor. Virgem. Puro. Imaculado.
Mas não é. Por isso o medo. Mudo. O nada. O não se mudar eterno. No vácuo. A
mesma cara virada pro sol. Lastimável.
23
Um fantasma
ronda a noite. Passeia pelos corredores. Assobia dentro dos fossos dos elevadores.
Sobe engrenagens rangendo correntes. Adentra salões de sinuca abandonados. Castelos
de cartas desabitados. Não sabe. Dar vida à pedra. Dar vida à palavra. Só geme.
E quer. E como! Mas não sabe. Sempre alheio. Alienado. Sem aliados. Sem um
tostão. Sem roupa. O fantasma é sempre só. Desabitado. A boca desdentada. Não
sabe que é. Nem sente que passa. Só quer. Esconde-se no pólen de uma flor. Como
um deus. Lótus obscuro. Sobre águas de concreto.
24
É preciso um
corpo. Pra descansar de ser alma. Morrer muitas vezes. Ser terra. Ser pedra.
Ser planta. Árvore. Ave. Lagarto. A língua do dragão. De fogo. Uma criança.
Consumo um
corpo. Preciso dele. Devoro o meu próprio e corpos alheios. Demoro-me o que
posso O organismo quer perdurar. O orgasmo quer. Num ó! A lua não para.
Enquanto eu não me parar. A lua não vai me parar. A lua não vai me perturbar. A
lua vai perdurar. Preciso me perpetuar? Na palavra.
Mas em
torno. Da palavra. O silêncio. A envolve. O silêncio. A palavra. Um não dizer.
Não significar. Envolve o significado. Como um plástico de bolhas. O nada em
torno do ser. O ser pleno de nada. O ser é não ser. Diz-me a navalha.
Um corte. No
céu. Sangra. A lua.
Imagens que
a lua suscita.
25
A imagem no
espelho parece mais nítida. Cara de lua. Careca. Espinhas extintas. Marcas.
Cicatrizes. Pelos de barba. Salpicada de estrelas. O céu das sobrancelhas. O
sol da lâmpada de mercúrio.
26
O vinho
desce boca adentro. Barriga arriba. O corpo deixa de fazer sentido. Mas não
larga. A prontidão. Nem perde a pose.
27
O sexo é
árduo. Amor arde. A lua esplendece. A sua ausência. A vida é fátuo. O inevitável
desejo de usar a palavra. Fato.
Fim da
palavra. Ato.
28
Mais um dia
se levanta. Eu me deito. Lua ao avesso.
Ponto cego
da lua. Narciso cego. O espelho.
29
A lua sobre
o precipício. Pula de cabeça no mar. O mar de dejetos. Reflete o seu olhar. Não
parece de prata. Parece sangrar. Sobre os habitantes. A cidade marinha. A
cidade mergulhada em um caldo que ela mesma produz. A mesma merda. A lua sobre
os homens. Muda. Mudos. Mundos. Mundanos. Mudamos. Nossa imundície. Nossa
ignomínia. Nossas tantas palavras. Que não se dizem. Não se repetem. Lua. Luar.
Cabeça de caveira. Desdentada. Oca. Seca. Dura. Parece um olhar. Que perdura. Mas
não tem ninguém. Para interpretá-lo.
A lua é o
teclado de um piano.
Vermelho.
30
A lua pisca.
Seu olho impossível. Me assusta. Pesa. Cor-de-rosa. Sobre o cachorro. Que na
rua passa. Cabisbaixo. O rabo entre as pernas. A lua o lambe com o olhar. O cão
treme á própria sombra.
31
A lua
vermelha assim revirada.
Pela metade
parece
Taça de
sangue.
A lua sangra.
Globo do
olho rasgado.
Ao meio pela
nuvem
32
Apaga. Lua.
Cala. Muda. Dupla. Cara. Cebola. Murcha.
Afoga. A
mágoa. No mar. Desolado. Degolada. Salomé.
Tridimensional.
A lua se acende. Novamente. Parece sorrir. A cara. Cheia de espinhas. Crateras.
Tinta de vinho.
O ar espesso
a avermelha. A atmosfera intragável da Terra.
33
A lua nasce
em chamas. Rubra. Um rubi pela metade. Um dente arrancado. O corpo abortado.
Paira uma ameaça.
34
A meia taça
da lua. Esconde o seio da noite.
Poemas sobre lua
I
Lua dos poetas,
Lua das punhetas.
Lua dos poentes,
Lua dos doentes.
Lua dos atoas,
Lua dos atordoados.
Lua dos tônicos
Lua dos átonos.
II
o que você me der
é outra coisa em minha boca
você em minha boca
é outra coisa
é outra boca
já é meu
o que for
que me der
um doce
um chapéu
o silêncio
a saliva
a ponta da língua
na orelha
a fala do silêncio
a fada
adeja o sexo
III
não é coisa esta
é outra
o lado de dentro pra fora
o lado de fora pra dentro
IV
Embrulhada em nuvens
a lua se desfaz.
Agora são muitas
Pequenas coisas
Que cintilam.
V
A lua-cheia
entre nuvens pesadas
Aparece folgada.
Parece sorrir
E finge envergonhada
Paira
Sobre a praça
a árvore
a montanha
o mar
o poste
botão de flor
acaba de se abrir
feito de palavras
um cravo na botoeira da lapela
entregando-se
carrega sonhos
na bandeja de prata
a lua
novamente
reúne meus pedaços.
Sol
Sol
I
Sobre o orbi
O sol
Sempre abismado
consigo mesmo encontrado
criador de planetas
mãe-pai de todos
nós
o deus-olho
o olho-deus
o todo-fulgor
em silêncio
doador de existência
sou parte dele
que se contempla
nele me contemplo
sou junto dele
faço parte da explosão que o dá forma
sou forma dessa mesma explosão
II
o sol não se faz
de rogado
está em toda parte
ao meu lado
à minha frente
há um sol degolado
a rima foi sem querer
só queria dizer:
que esse momento
não é mais
tudo é passar
já é passado
tempo comedor de momentos
não lamento
rima não há
III
sinto os dentes na boca a sorrir
um sol que morde a poupa da lua
*
seca a terra
sob o sol
vermelho, vermelha
tons de rubro
como o coito
IV
o céu
cobre
a terra
o coito
do céu
e da terra
a terra
é a mãe
do céu
ao nascer
o filho
a penetra
a própria mãe
inicia
o coito
interminável
...
...
V
Minas a ferro e fogo
olho
do céu
furado
a ferro em brasa
sangra
sobre o orbe
pés
de vento
sacodem
a terra
canta-lamenta
e chora-ri
costas
lanhadas
de estrelas
o céu,
o chão
o sustenta
morros e vales
serra e cidade
cristas de pedras
secas crispam
costas de crocodilos
o vento lambe
o mar de morros
encrespa
pegadas de ferro
espalhadas
por larga extensão
VI
*
o planeta
um grão
de sal
que
o olho
sol
o derrete
*
o planeta
bola
de ferro
compacto
não se abre
ao sol
incandesce
o imita
calcina
o que o toca
como olho
*
o planeta
uma bola
de ouro
dentado
e o sol
e o vento
mais o douram
Estrela
Estrela
estrela
cintila
átona
tônica
dominante
.
essa
aquela
aqui
acolá
relembra
o que foi
és passado
esplendecer
alhures
não és mais
o que vejo
no presente
o que és
qual você?
a verdadeira
estrela
se no meu céu
cintilo
à essa distância
me vês
sou também
partícipe
de uma explosão
que não
percebo
o que verás
é um ser
que daqui
a bilhões
de anos luz
(anos luzem?)
(o tempo no espaço?)
(o espaço-tempo?)
nascerá
já nasci
e morri
e um dia
apontará
seus instrumentos
que perscrutam
os céus
a região
do céu
em que moro
onde uma estrela
abandonada
virou carcaça
alguém
de um futuro
muito distante
verá o meu
sol
sou já
o passado
para ele
(ou ela)
de uma estrela
acabada
vejo
daqui
da janela
a luz
de uma
estrela
ela já não
existe mais
como
a
vejo
assim como
se algum
ser
dessa
estrela
agora
vê
aqui
a luz
desse sol
ele (ela)
vê
o sol
de milhões
de anos-
luz
atrás
ele vê
o seu
passado
assim como
o estamos
vendo
mas
se daqui
a bilhões
de anos-
luz
alguém
vê
nossa
luz
de agora
já estarão
nos
vendo
nossos
contemporâneos
do futuro...
Nenhum comentário:
Postar um comentário