Mochila Rasgada


Mochila Rasgada
1973 - 197

 Dedo de prosa


Primeiro esboço de livro do jovem poeta que se apresenta e inicia suas atividades experimentando os materiais da língua e da cultura que sua tribo, lugar e época lhe ofereceram. Divulgado xerocado aos pedaços e distribuído aos amigos, ampliado e modificado ao longo dos anos. Enfeixam um tipo de viagem de linguagem e temática que, mesmo que ainda pueris, valem o registro de sua passagem, as paisagens que sugerem, as sensações e os sentimentos que tentam traduzir de uma geração que adolesceu nessas paragens durante os anos setenta, do século vinte.








o espelho
reflete o rosto
passado presente
sentidos, miragens
distâncias na mente
sementes, imagens
o que se escreve reflete o que amamos
reflete
o espelho
1973

meu sonho
é ir embora
com a cabeça forrada
correr mundo afora
a mochila rasgada
corpos floridos molhados
meu sonho
é ir embora
com minhocas na cabeça
 1974


passarinhos
fizeram ninhos
nos meus cabelos
da janela
flores vejo
cores, marcas
nascem moscas
do sangue
levam, cupins
invadem a madeira
a terra batida
a lambidas
1974



setas
riscam o céu
prata ilumina
a noite
de inverno
passos tortos
redemoinhos
passeiam, brincam
preocupações dissipadas
transformam em lares
as esquinas
o vento laranja nos leva
de repente um farol
fixa minha vista
1974

vida e sonho
passos lentos
sobre folhas
sob as
árvores altas

o amor
o sofrimento, o confundir-se
amor e sofrimento
lágrimas lentas
pelas faces
lentas
 1975



o sangue escorre
o corpo novo
lágrima brilha
coração e desce

já some a rima
nasce
palavra nova
 1975




manhã de vidro
o sol dourado
menino vai
buscar a noite

as aves voam
toda uma vida
 1975



quem é você
que não conheço,
estranho à minha porta,
dentro de minha casa,
deitado em minha cama?

quem é você
que se despe à minha presença
e me espanta a nudez
e me beija
quando encontra meus olhos
dentro do espelho?
 1975

ausente
eu digo,
te encontro
amigo,
num verso
antigo
1976



Você me vê aqui
sem te encontrar
e à mim também
mas sabemos
que lá dentro
nada existe
sem os corpos.

São unidos
separados
– são os corpos –
 1976


construirei
de minha alma
uma érmida
e encerrarei
dentro dela
a palavra

onde o trabalho
é bem visível
a olhos cegos
e as mãos
são calejadas
e carinhosas
1976



como coube
a música
à paisagem?!
se ajustaram
verdes, vivos
homens, plantas,
como a água
a mão
que trabalhou
a água
 1976


corro atrás
de azuis borboletas
cores abertas
noites de estrelas
cardumes de grilos
matas de ferro
campo
florido de plástico
1974



gritos
mãos
se levantam
olhos
manhãs que se fecham
flores murmuram
sangue
derrama tanta
solidão que envolve
1976



lua chama
fora olhos
lua pede
companhia
homens
mulheres
flagelos
meninos
as almas cansadas
 1976


canções de infância
brinquedo
atrás de bola
e passarinho
suor na testa
noites de festa
luar de asas
gato de botas
 1976


noturno
cão vadio
música espanhola

a lua barca
abarca os mares
no céu singrando

e o caminhante
solitário amante
à noite
nos bares
1976



quero encontrar
aquelas mãos antigas
e trabalhar teu corpo
com urtigas
1977


Poemas de Cláudio Rodrigues

Um comentário:

  1. Fui desfazendo os fios, desconstruindo a meada e me abismei.
    Teci tapetes invisíveis na alma com estes poemas.

    ResponderExcluir

.

.